DOMINUS JESUS E O REENTRINCHEIRAMENTO DO VATICANO

Dr. Samuele Bacciocchi

 

 

     A Declaração do Vaticano Dominus Jesus, anunciada na terça-feira, 5 de setembro de 2000, reafirma a tradicional posição católica expressa pelo Papa Bonifácio VIII em sua bula "Unam Sanctam" (A. D. 1302): "Há somente uma Santa Igreja Católica e Apostólica, e fora dessa igreja não há nem salvação nem remissão de pecados. Essa posição foi substancialmente modificada por ocasião do II Concílio Vaticano (1962-1965) que formulou o conceito, especialmente na Constituição da igreja, de que a salvação não é encontrada somente dentro da Igreja Católica, mas também fora de seu rebanho, por todos quantos vivam segundo sua consciência.

Essa visão mais ampla de várias avenidas à salvação inspirou a política de tolerância benevolente para com os não-católicos. Os protestantes, por exemplo, foram reabilitados de heréticos a “irmãos separados”, e irmãos e irmãs em Cristo. Semelhantemente, membros de religiões mundiais são agora tratados com abertura e respeito.

No pensamento dos conservadores do Vaticano, a política de tolerância benevolente para com os não-católicos inaugurada pelo Concílio Vaticano II pode ter ido longe demais. Pode ter enfraquecido a suposta unicidade e primazia da Igreja Católica. Essa preocupação é expressa numa “nota” oficial de quatro páginas pelo Cardeal Joseph Ratzinger, o poderoso Prefeito da Congregação da Doutrina da Fé, do Vaticano. A “Nota” aprovada pelo Papa João Paulo II em 9 de junho, explica que “quando a expressão “igrejas irmãs” é empregada no sentido apropriado, a única, santa, católica e apóstolica Igreja Universal não [quer significar que] é irmã, mas “mãe” de todas as igrejas particulares. Esta não é meramente uma questão de terminologia, mas acima de tudo de respeito à verdade básica da fé católica: a unidade da Igreja de Jesus Cristo. De fato, existe somente uma Igreja”. Em outras palavras, é crença católica fundamental que existe somente uma igreja verdadeira possuidora dos meios de salvação e tal igreja é a Igreja Católica Romana.

Qualquer salvação que se possa obter mediante outras igrejas por fim deriva da plenitude de graça e verdade confiada à Igreja Católica”. Essa verdade fundamental é reiterada plenamente nas 16 páginas da Declaração Dominus Jesus, que é sobretudo uma reprimenda a teólogos católicos liberais que têm argumentado que todas as religiões são igualmente caminhos válidos para a salvação. Contrariamente ao pensamento de muitas pessoas, a Igreja Católica não é uma organização monolítica, onde todos os seus teólogos sustentam os dogmas católicos fundamentais. Há muita dissidência dentro da Igreja Católica. Alguns de meus professores jesuítas na Pontifícia Universidade Gregoriana em Roma, Itália, abertamente questionavam em aula dogmas tão importantes como a infalibilidade papal e a transubstanciação.

 A Declaração preocupa-se com a “rápida difusão da mentalidade relativística e pluralista” entre teólogos católicos liberais que crêem que “uma religião é tão boa quanto outra”. Para remediar esse problema, a Declaração reitera que “aos católicos fiéis é requerido professar que há uma continuidade histórica—enraizada na sucessão apostólica—entre a Igreja fundada por Jesus Cristo e a Igreja Católica. . . . Existe uma única Igreja de Cristo, que subsiste na Igreja Católica, governada pelo Sucessor de Pedro e pelos bispos em comunhão com ele”.

A Declaração faz uma distinção entre as igrejas Ortodoxas que retêm “a sucessão apostólica e uma eucaristia válida”, e as “comunidades eclesiais” protestantes “que não preservaram o episcopado válido e a substância genuína e integral  do mistério eucarístico”. Os primeiros são vistos como parte da “Igreja de Cristo” dados os íntimos laços com a Igreja Católica, enquanto os últimos “não são igrejas no sentido próprio; contudo, os que são batizados nessas comunidades são, pelo batismo, incorporados em Cristo e assim estão numa certa comunhão, conquanto imperfeita, com Cristo”.

Ambos os documentos significativamente evitam o emprego da palavra “igreja” quando referindo-se aos protestantes, adotando, em lugar disso, a ambígua expressão “comunidades eclesiásticas”. Essas comunidades protestantes podem ter elementos de verdade, mas, segundo a Declaração, “derivam sua eficácia da própria plenitude de graça e verdade confiada à Igreja Católica”.

 O que isso tudo significa é que as igrejas nascidas da Reforma Protestante são reduzidas pela Declaração do Vaticano Dominus Jesus a um nível inferior, sendo excluídas da lista de “igrejas irmãs”. Os protestantes não possuem os meios de salvação dentro de suas comunidades, mas são dependentes para a salvação da “própria plenitude de graça e verdade confiada à Igreja Católica”.

 

AVALIAÇÃO DA DECLARAÇÃO DOMINUS JESUS

A Declaração absolutista do Vaticano de que a salvação para quaisquer pessoas é em última instância possível somente mediante os canais de graça confiados à Igreja Católica apresenta-se em claro contraste com o diálogo interconfessional fomentado pelo Concílio Vaticano II e os incansáveis esforços do Papa João Paulo II em tornar-se o indisputável líder da humanidade mediante o contato com pessoas de outras fés.

Fica-se a imaginar o que teria levado a esse reentrincheiramento do Vaticano? Qual é a justificativa teológica e bíblica para as alegações absolutistas do Vaticano ao reivindicar a posse do monopólio da salvação? É lamentável que a extensa cobertura da imprensa da Declaração do Vaticano não ofereça qualquer tentativa de entender e explicar a sutil maneira em que o documento  Dominus Jesus justifica a reivindicação católica de possuir os únicos meios de salvação. Essa análise tenta preencher esse vazio considerando brevemente os pressupostos teológicos de tal reivindicação.

A razão para o reentrincheiramento do Vaticano é a preocupação, mencionada antes, de que a política de tolerância benevolente iniciada pelo Concílio Vaticano II, pode ter ido longe demais. Incentivou a difusão do “relativismo religioso” e “a mentalidade de indeferentismo [que] conduz à crença de que uma religião é tão boa quanto outra”. Tal ponto de vista solapa a unicidade e primazia da Igreja Católica. No salão de conferência de imprensa para apresentar a Declaração Dominus Jesus, o Cardeal Ratzinger, vigilante doutrinário do Vaticano, declarou que alguns teólogos estão “manipulando e indo além dos limites” da tolerância quando colocam todas as religiões no mesmo plano.

É evidente que o Vaticano está preocupado com a difusão do relativismo e pluralismo teológicos que está enfraquecendo a alegada unicidade e primazia da Igreja Católica.

Para contrafazer essa ameaça Dominus Jesus reitera de modo sucinto mas abrangente o fundamento teológico da reivindicação católica de possuir o único meio de salvação.

O documento de 15 páginas é bem estruturado, tendo uma introdução, seis partes, e uma conclusão. A introdução declara o problema que motivou a Declaração. “A constante proclamação missionária da Igreja [Católica] está ameaçada hoje pelas teorias relativísticas que buscam justificar o pluralismo religioso, não somente de facto como também de iure (ou em princípio)." O resultado é que “a mediação salvífica universal da Igreja [Católica]” é debilitada e obscurecida.

Para contrafazer a “mentalidade relativística, que está se tornando cada vez mais comum”, as primeiras três partes da Declaração reafirmam a plenitude da revelação de Jesus Cristo e a unicidade e mistério salvífico de Jesus Cristo.

 “Deve-se crer firmemente, pois, como uma verdade da fé católica que a vontade salvífica universal do Único e Triúno Deus é oferecida e cumprida uma vez por todas no mistério da encarnação, morte, e ressurreição do Filho de Deus”.

Os cristãos evangélicos lendo estas primeiras três partes do documento podem achar-se em plena concordância com a ênfase sobre a revelação única e salvação provida por Jesus Cristo. Afinal de contas este é um conceito bíblico fundamental. Contudo, a maioria dos leitores pode deixar de perceber a razão pela ênfase do papel salvífico singular de Cristo, que se torna visivel nas três seções seguintes. As últimas explicam que o mistério salvífico de Cristo torna-se uma realidade para o crente somente através da Igreja Católica e seus sacramentos.

Afirma a Declaração: “Cristo continua Sua presença e obra de salvação na Igreja e por meio da Igreja”. Por “Igreja” quer-se dizer, “a Igreja Católica Romana”, e não as igrejas cristãs em geral. Isso é claramente enunciado em Dominus Jesus: "Assim como há somente um Cristo, também existe um único corpo de Cristo, uma única noiva de Cristo: uma única Igreja Católica e Apostólica”. “Existe uma única Igreja de Cristo, que subsiste na Igreja Católica, governada pelo sucessor de Pedro e pelos bispos em comunhão com ele”.

Ao ligar a obra salvadora de Cristo com a Igreja Católica, tornando a última o único canal para dispensar “o mistério salvífico de Cristo”, a Declaração torna a salvação um monopólio da Igreja Católica. Isso significa que a própria Igreja Católica é um “sacramento”, ou seja, um canal de graça para o mundo. “A Igreja é um “sacramento”—. . . ela é o sinal e instrumento do reino”.

Essa reivindicação pretensiosa, absurda e exclusivística baseia-se no pressuposto infundado de que a Igreja neotestamentária é uma organização visível e hierárquica, originalmente estabelecida por Cristo ao tornar Pedro a rocha fundamental da Igreja (Mat. 16:18). Conhece-se isso como “Teoria Petrina”, segundo que Cristo confiou a Pedro o governo de Sua igreja. Para dar vigor à teoria, a Declaração repetidamente apela à “sucessão apostólica”. Mas essa última representa a existência de uma sucessão ininterrupta a partir de Pedro, o primeiro papa, até João Paulo II, o último papa. Os católicos orgulhosamente assinalam que não há outra igreja que possa fazer essa reivindicação de sucessão ininterrupta.

Conclusão. As reflexões acima sobre a Declaração Dominus Jesus, serviram para destacar a tentativa católica de tornar a salvação uma dispensação da igreja, antes que uma disposição do crente. Ao reivindicar ser a única igreja que tem a sucessão apostólica e, conseqüentemente, o direito de dispensar salvação, a Igreja Católica está iludindo milhões de pessoas sinceras, levando-as a crer que não há salvação fora da Igreja Católica (no salus extra ecclesia). O fato de que a Declaração Dominus Jesus gasta bastante espaço em reiterar esse tradicional ensino católico termina servindo ao propósito de revelar que Ellen G. White estava certa, afinal de contas, quando escreveu:

 “Roma nunca muda. Seus princípios não se alteraram no mínimo ponto. Ela não reduziu o abismo entre si e os protestantes; estes é que tomaram toda a iniciativa de progresso. Mas o que isso indica quanto ao protestantismo de nossos dias? É a rejeição da verdade bíblica que leva os homens a se aproximarem da infidelidade. É uma igreja apóstata que reduz a distância entre si e o Papado" (Signs of the Times, 19 de fevereiro de 1894, par. 4).

Nossa única salvaguarda contra os ensinos enganosos como se acham no documento do Vaticano Dominus Jesus, é a familiaridade com os ensinos da Palavra de Deus. A Bíblia torna abundantemente clara que a igreja não é uma organização hierárquica que tem o direito de dispensar salvação, porém uma comunidade de crentes dedicada a proclamar “as virtudes daquele que [n]os  chamou das trevas para a Sua maravilhosa luz” (2 Pedro 1:9).

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*O Dr. Samuele Bacchiocchi é professor aposentado da Andrews University. Ele foi o primeiro não-católico a cursar a Pontifícia Universidade Gregoriana, do Vaticano, e doutorou-se com louvor por seus trabalhos acadêmicos em dita universidade, recebendo do próprio papa uma medalha por se ter destacado em suas atividades acadêmicas.

Este material foi traduzido de parte de seu boletim no. 54, de um ministério que Bacchiocchi promove pela Internet intitulado “Endtime Issues” (questões do tempo do fim).

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